O CALDO CULTURAL DOS “ESCRAVOS DE JÓ” DE CARIRY.  

Por Celso Sabadin.

A belíssima Ouro Preto é o pano de fundo para uma cativante história de amor envolvendo os jovens Samuel (Daniel Passi) e Yasmina (Daniela de Jesus). Ele, um cineasta descendente de judeus; ela, refugiada palestina, é restauradora de obras de arte.

Como Samuel tem poucas informações sobre seus antepassados, ele procura a consultoria de Elifas (Everaldo Pontes), um empenhado – porém preconceituoso – estudioso da cultura e da história judaicas. Buscando pontos de vista diferenciados sobre a questão, Samuel também acaba se interessando pela beleza da poesia árabe, que lhe é apresentada pelo livreiro Jérèmie (Antonio Pitanga), negro e homossexual.

Sim, “Escravos de Jó” segue a longa e sólida tradição cinematográfica de seu roteirista e diretor –  Rosemberg Cariry – de intensas discussões sociais e culturais sobre a formação do povo brasileiro.  Quem já viu – e se deliciou – com “Corisco & Dadá”, “A Saga do Guerreiro Alumioso”, “Os Pobres Diabos” e “Siri-Ará”, entre outros, sabe que o cinema de Cariry não é para principiantes.

“Escravos de Jó” é um filme ensaio, recheado de provocativas referências cruzadas que nos conduzem pelos ricos raciocínios do que se convencionou chamar de “caldo cultural”. O olhar da bela Yasmine, emoldurado por seu véu palestino, restaurando com admiração uma imagem católica é um dos mais belos planos-síntese que o nosso cinema criou, ultimamente.

Tudo isso sob o sol, a chuva e o sereno de Ouro Preto, cidade que sintetiza este país de belas riquezas edificadas sobre um subsolo encharcado de sangue e injustiças.

O próprio Cariry fala de “Escravos de Jó”, em material divulgado pela assessoria de imprensa:

 

Como surgiu esse projeto?

Esse filme resulta de um projeto de longo percurso. Foi escrito na França em 1998, para ser rodado na cidade de Estrasburgo, na Alsácia, no ano 2000, na virada do século. A história se passava em torno da catedral gótica de Estrasburgo e do Campo de Concentração de Struthof. Samuel era um jovem estudante de cinema brasileiro que conhecida Yasmina, uma jovem palestina, que estudava arquitetura e fazia pesquisa sobre a arquitetura gótica. A história envolvia a comunidade judia local e a população árabe, palestina e magrebina, da periferia da cidade. Passei um ano em Estrasburgo, estudando essa ideia, visitando e gravando os lugares de possíveis locações em vídeo. Conheci ali sobreviventes da grande catástrofe que foi a Segunda Guerra Mundial, onde ouvi e li sobre o horror nazista na região. Eu estava estabelecendo as possibilidades de coprodução, quando veio uma crise no Brasil e inviabilizou a realização do projeto. Voltei para o Brasil e envolvi-me com uma outra produção.

 

Por que a escolha de Ouro Preto?

Em 2015, o projeto “Os Escravos de Jó” ganhou um edital da Ancine, para filme de baixo orçamento. Pensei rodar o filme na cidade do Porto, em Portugal, onde vivi, entre 2016 e 2019, por conta de estudos acadêmicos. No novo projeto, a trama envolvia as heranças judaicas e árabes na Península ibérica, só que dessa vez eu incluía também a comunidade cigana – ainda hoje vítima de perseguições e preconceitos, em toda a Europa. Locações feitas, atores escolhidos, veio o aumento de valor do euro e a desvalorização do real, ficando impossível rodar um projeto com tão poucos recursos, em Portugal. Isso trouxe para mim um grande desapontamento. Tive um pouco mais de três meses, por conta do prazo de conclusão do projeto, para adaptar o roteiro e fazer novas locações. Escolhi Ouro Preto, cidade onde morei, como estudante, no início da década de 1970, que, por sua importância histórica e arquitetônica, traz fortes elementos que contribuem para a narrativa trágica do enredo. Esse filme perseguiu-me como um fantasma. Precisava expô-lo à luz e não me faltou coragem para tanto, mesmo sabendo das muitas dificuldades que eu iria enfrentar. Foi um grande desafio e a produtora Bárbara Cariry fez mais do que o possível para rodarmos o filme com o pequeno orçamento disponível.

Como foi a finalização?

Depois de rodarmos o filme, eu voltara a Portugal para rodar um seriado sobre a utopia das festas do Divino Espírito Santo (arquipélago dos Açores e Portugal continental e, depois, no Brasil, nas cinco regiões) e fazia viagens de estudos, por alguns países, juntando material de pesquisa para escrever o projeto do filme “O Espanhol”, que tem como pano de fundo a guerra civil da Espanha. Ao mesmo tempo, montávamos o filme “Escravos de Jó” à distância. Já tínhamos alguns esboços de montagem bem adiantados. Em verdade, tínhamos três versões diferentes, em algumas sequências precisávamos de tratamento de efeito digital e não contávamos, no momento, com recursos para isso. Vivíamos esse processo de discussão e de buscas, quando surgiu o convite para abrir o Festival de Tiradentes (2019), por conta da homenagem que se fazia naquele ano ao ator Antonio Pitanga. Dissemos à organização daquele evento que o tempo era curto para concluir o filme, mas consideramos a relevância da homenagem a Pitanga e mesmo a importância dessa estreia. Escolhemos uma das

versões, a que estava mais adiantada, onde constavam inclusive alguns improvisos que fizemos no último dia de filmagem (dia trágico, porque naquele dia fora anunciado a vitória do presidente de extrema-direita). Depois cortamos esses improvisos ocasionais incluídos na primeira versão, foram para o making of, para um documentário que está sendo montado sobre o percurso do filme – uma reflexão sobre o fazer cinematográfico e seus percalços. O certo é que conseguimos algum dinheiro próprio, retomamos a montagem e chegamos a essa versão que ora estamos apresentando nas salas de cinema e na TV. Esse trabalho final contou com a decisiva colaboração de Firmino Holanda (na montagem), Érico Paiva (na mixagem) e Magno Guimarães (na finalização). Foi um processo demorado, por conta dos poucos recursos, da necessidade de intervenções digitais em algumas cenas (que não pudemos usar antes). Bárbara Cariry, a produtora, desdobrou-se para que a obra fosse finalizada como deveria ser. Sou agradecido a ela e a toda equipe.

 

Por que você escolheu um tema diferente na sua filmografia, que parece tão espinhoso?

A questão do bem e do mal, como questão filosófica e teológica sempre me interessou. O livro de Jó, no Velho Testamento, tem um material simbólico e arquetípico que nos possibilita alguns vislumbres, por ali Javé lançar o homem no absurdo da sua própria condição e na sua dolorosa realidade, diante das forças cósmicas e da presença do mal. Para provar a fidelidade de Jó, Javé não apenas o cobre de misérias, mas, através da ação de Satanás, extermina sua família, seus escravos, seus rebanhos. O paradoxo torna-se ainda mais absurdo quando pensamos nas mulheres, nos filhos sacrificados. E os escravos de Jó, que nem à família de Jó pertenciam, a não ser como homens-objetos privados da liberdade, o que tinham a ver com essa disputa entre Javé e Satanás? Marc Bochet afirma sobre Jó: “A sua narrativa refere-se ao início de um eclipse e Deus, de que não nos recuperamos”. Eclipse que seria anunciado na frase Gott ist tot, dita por Friedrich Nietzsche (1844-1900): “Os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como havemos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos!” A fábula bíblica de Jó tem sido, por vezes, considerada uma das mais assombrosas representações do absurdo da miséria humana, no âmbito da tradição judaico-cristã.

Por outro lado, a tragédia do jovem Samuel aproxima-se da tragédia de Édipo e pode ser compreendida como uma alegoria prefigurada da sociedade contemporânea que, sem

decifrar as heranças do passado, transforma a vida e o amor em atordoantes simulacros. Temos assim, uma revisita à tragédia grega, atualizando-a na contemporaneidade, em um mundo circunstanciado por dominações econômicas e ideológicas, onde afloram os estigmas racistas e os sectarismos e, cada vez mais, os fanatismos de diversas vertentes, em construções identitárias fundamentalistas e intransigentes, onde a realização do amor e mesmo a alteridade torna-se quase impossível. Ao revisitar a tragédia grega, revisita-se também o conceito psicanalítico do Complexo de Édipo, mais na visão lacaniana do que freudiana. O pai não é apenas o pai biológico, mas é o Nome do Pai, aquele que representa o poder da força e da castração, que freia os desejos e estabelece a civilização, como construção de ruínas, como bem compreendia Walter Benjamin. A herança do passado é quase sempre uma maldição, de tal modo que a presença dos mortos determina a história ou o destino dos vivos. Na civilização ocidental, o nazifascismo, com seus horrores, não é uma exceção, mas pode ser compreendido como uma manifestação da modernidade (Bauman). No caso do Brasil, atrasado e periférico, a herança da escravidão é um fantasma que pulsa como uma ferida sempre aberta e sangrando. No meio disso, dois jovens, marcados pela história e pela vida, tentam se encontrar. Dificilmente conseguirão. Achei adequado esse tema para tratar da tragédia contemporânea, do desencontro e da dificuldade de entendimento entre sujeitos que se diferenciam de forma crescente. O filme encara algumas feridas da nossa história.

 

No filme você aborda a questão do barroco…

Trato do barroco como pano de fundo da história. No entanto, entendo que o barroco, visto na sua expressão contemporânea, conceituado como neobarroco ou transbarroco, tem uma importância grande nas lutas de afirmação da América Latina. Venho explorando esse conceito de transbarroco em vários dos meus filmes e mesmo em alguns trabalhos acadêmicos. Eu compreendo o transbarroco como um espírito de busca e de inquietação, sempre aberto para novas percepções e experimentações, guardando as características fundadoras: o conflito, o dilema, a contradição e a dúvida. A promessa do eterno que não esconde a efemeridade de todas as coisas, entre fracassos e renascimentos. A forma como a busca incessante de um sentido de um mundo em tudo absurdo, percebido através de incontáveis movimentos e dobras. Deleuze vai ver o barroco como um traço operatório,

dobras e desdobras ad infinitum. Vejo o Brasil como sendo um país transbarroco, em sua renda de tessitura mais delicada e no aço retorcido do chicote escravocrata – sangue e dor da violência mais extremada. Nesse sentido, nele caberiam todas as dores e desencontros do mundo.

 

O que você espera com esse lançamento?

Tenho um bom senso de realidade, apesar de também trabalhar com o imaginário. Nesse momento, por parte das políticas de incentivo, não há recursos para financiar o lançamento do filme do cinema nacional em salas. Estamos fazendo um lançamento bem modesto, por conta da questão financeira e das poucas salas disponíveis para um cinema independente, nesse momento conturbado, onde a cultura é tão penalizada. As bilheterias para o cinema nacional refletem a grande crise econômica e política que se abateu sobre a nação brasileira. Fazemos um cinema de resistência e o binômino “existir/resistir” já é um sinal de luta pela arte e pela dignidade. Somos sobreviventes, lutamos por melhores dias e não deixamos de esperançar uma mudança significativa de toda essa situação. Estamos atentos. É uma luta de trincheiras, palmo a palmo.