GRAMADO 2014 SURPREENDE COM DOIS ÓTIMOS MUSICAIS NACIONAIS.

Sou da linha que defende a diversidade do nosso cinema. Para que se consolide, o cinema brasileiro deve produzir dramas, comédias, filmes autorais, artísticos, comerciais, experimentais, produtos para formação de plateia (filmes infantis e infanto-juvenis), documentários, tudo, sem preconceitos. Mas nem nos meus mais otimistas devaneios (sempre fui um sonhador) eu poderia supor o que vi nesta edição do 42º Festival de Gramado: não apenas um, mas dois musicais brasileiros.
Exatamente. O nosso cinema, que tanta tradição de filmes musicais tinha nas épocas da Cinédia e da Atlântida, vê este gênero tão combatido pelo preconceito ressuscitar nas telas de um dos mais tradicionais festivais de cinema do país com nada menos que dois filmes: “A Luneta do Tempo” e “Sinfonia da Necrópole”.

“A Luneta do Tempo” é a estreia do famoso cantor e compositor Alceu Valença no roteiro e na direção cinematográfica. Ele diz que tinha o filme há 14 anos na cabeça, e finalmente conseguiu realizar seu sonho de contar esta deliciosa história, sob o formato de um brasileiríssimo cordel cantado. A trama fala de um cangaceiro, amigo e compadre de Lampião, morto de forma traiçoeira por um tenente. Abalada, a viúva do cangaceiro abandona o cangaço e foge com um circo, dando início assim a uma história que terá vários desdobramentos por décadas.

Recheado de canções compostas pelo próprio Valença, “A Luneta do Tempo” tem todas as suas falas e diálogos rimados como na literatura de cordel. O que, diferente do que possa parecer, não se torna cansativo em nenhum momento. Pelo contrário: às vezes heroicas, às vezes cômicas, as rimas conduzem com graça e maestria esta narrativa que tem um pé no medieval e outro fincado nas profundas tradições nordestinas ligadas às alegorias e simbolismos, à religiosidade dicotômica de Céu contra Inferno.
As marcantes presenças de Irandhir Santos como Lampião e Hermyla Guedes como Maria Bonita são dois atrativos a mais para o filme.

Se “A Luneta do Tempo” é marcadamente alegórico e nordestino, “Sinfonia da Necrópole” é eminentemente urbano e paulista, destilando um tipo de humor negro. Igualmente delicioso, mas nem sempre muito bem compreendido em outras regiões brasileiras.
O filme é o primeiro longa que Juliana Rojas assina sozinha, já que seu trabalho anterior, o também ótimo “Trabalhar Cansa”, foi assinado em conjunto com Marco Dutra, que aqui compartilha os créditos de trilha sonora com Juliana.
A trama gira em torno de Deodato (Eduardo Gomes), rapaz que tenta ser coveiro, mas desmaia sempre que começa a pensar na morte de seus “clientes”. O diretor do cemitério o coloca então numa função mais burocrática: recadastrar os túmulos que serão desativados para abrir espaço a jazigos verticais. Neste trabalho, ele será chefiado por uma atraente executiva (Luciana Paes), por quem se apaixona.

Tudo isso regado e conduzido por canções interpretadas pelos coveiros… e pelos mortos, numa viagem divertidamente macabra que, mesmo referenciando elementos de antigos filmes de zumbis, consegue se firmar dentro de um estilo eminentemente brasileiro, principalmente ao optar, com acerto, ao assumir todas as suas imprecisões.

Inclusive, é bom que se louve, tanto “A Luneta do Tempo” quando “Sinfonia da Necrópole” têm entre seus maiores méritos a competência em desenvolver seus estilos musicais de maneira totalmente brasileira, longe daquilo que conhecemos dos musicais norte-americanos, abrindo e percorrendo suas próprias trilhas. Inovando, divertindo e emocionando com os parâmetros da nossa criatividade, e buscando nossos e novos caminhos.

Dois ótimos momentos neste Festival de Gramado.

Celso Sabadin viajou a Gramado a convite da organização do evento.