CRÔNICAS DE CANOA QUEBRADA.

Após alguns dias de tensão bem interessante (muito ruim, na realidade) por conta de não poder contar com meu veículo funcionando para abrigar a cobertura que faço aqui de Canoa Quebrada, um pouco de alívio – acho que mais do que um pouco: na realidade um grande peso nas costas sumindo -, um pouco de paz, uma luz no fim do túnel, a partir do momento que vi os textos sendo divulgados no Planeta Tela, do amigo Celso Sabadin. Creio que tal sensação de dever não cumprido, de não saber que tem gente lendo o que escrevo, possa ter-me feito reparar que uma certa falácia que propalo sobre “não fazer questão de que conheçam meus textos, já que a satisfação maior está em poder escrever, em poder produzir”, não é tão crível assim. Talvez tenha me percebido na posição tremendamente criticada por parte de analistas que não conseguem crer no artista que faz arte apenas para satisfação pessoal. Longe de mim me comparar a artistas – na realidade tenho consciência plena que analisar as obras feitas por eles é um outro modelo de exercício -, com certeza devo ter cá no meu âmago algo daquele gene exibicionista que move alguém a criar: confesso que me achava mais interiorizado, até esse momento de pane que me impediu lido.

E já que tenho uma nova gama de leitores – e percebam o quanto me traio quanto às razões reais de minha angústia -, vou tentar voltar a ser mais leve na explanação geral das coisas daqui, falando menos desses dramas recentes que me apoquentaram, dizendo (ou repetindo, talvez) sobre o festival, sobre o local, sobre algumas peculiaridades, antes de embrenhar pessoas incautas no difícil exercício que é o de ler crítica a crítica dos curtas vistos – na realidade, mini críticas, para ser justo ao formato.

Ontem – acho que já tinha comentado –, a jornada prometia ser longa e festiva, já que o pessoal (não sei os oficiais ou os oficiosos) havia inventado a história de um “luau”, à noite, como é praxe, evidentemente, e na praia, mais evidentemente ainda: só para confirmar minhas impressões de aqui tem muito a ver com aquelas ilhas soltas no meio do pacífico (Hawaii, por exemplo), pelo clima, que parece não sofrer ameaças comuns de frentes frias ou linhas de instabilidade, pelo tamanho do mar (do horizonte de água que, percebe-se, só terá mais água após a percorrida a curvatura, e mais água para além). Bem: ventania mais intensa do que o comum, lua cheia, maré hiper-cheia, areia tomada, e nada de condições para o tão aguardado luau (é bom dizer que em eventos tão próximos de natureza e longe das urbes – de onde normalmente vem a maioria dos realizadores – os passeios e festas, fora da exibição dos filmes, costumam ser de muito agrado, de muito mais disputa, de muito mais ansiedade, principalmente por parte desses realizadores mesmo).

Aliás, ventania que também foi responsável pela interrupção da sessão (mais uma bem longa – elas beiram três horas…), ameaçando a tela que, parecia, rasgaria, o que obviamente seria praticamente um decretar de “fim do festival”, com cadeiras voando mais alucinadamente ainda – em pares, trincas, grupos – para cima dos poucos que insistiam em continuar assistindo. Três comentários sobre o vento daqui: alguém, logo na minha primeira noite, já havia alertado que com a “chegada” da lua cheia ele iria intensificar mais ainda do que o “normal”; as pessoas daqui costumam levar casaquinhos para as sessões, pela necessidade de fugirem do “frio” que sentem enquanto a intensidade aumenta (para mim, paulistano, fica parecendo coisa de maluco); e louco, para eles, devo ser eu, que fico extasiado, sorrindo, olhando para tudo admiradamente, enquanto a ventania insiste em derrubar e incentivar o agasalhar. Aproveitei para dar uma chegada na beira da praia – uma delas, a mais acessível -, ver o mar mais próximo da calçada, sob luz artificial que iluminava algumas casas dali, e uma igrejinha da década de 60, azul e branca, pequena, em meio ao vento que carregava areia, como se estivesse dentro de alguns momentos imaginários do Brasil que mais abastecem mentes de cinéfilos.

Aos filmes da noite interrompida.

MOSTRA COMPETITIVA

Vídeo

A Língua das Coisas, de Alan Minas. Brasil (RJ), fic, 14 min.

Curta de apelo sentimental, que conta a história de relacionamento entre avô e neto que vivem em lugar bucólico, onde a pescaria representa ser seu maior elo de relacionamento : por não saberem ler nem escrever o avô insiste em lhe falar de seus conhecimentos que tem a ver com a “língua” dos bichos, da natureza, das águas. Ao mudar a rotina do garoto levando-o para morar com a mãe distante dali, na praia, o diretor quebra as primeiras manifestações técnicas do filme (que eram de confecção plastificada, um tanto publicitária no modo de revelar os recantos onde viviam avô e neto) para inserir uma nova, que situá-lo mais nas questões “práticas”, onde a atuação do garoto passa a imperar como elemento principal, voltando às tentativas bucólicas iniciais, agora na “invenção” de uma escrita muito particular do garoto, que tem muito a ver com o que sempre aprendeu em seus tempos do interior, e nada a ver com as necessidades ditadas pela normalidade.

Alan Minas com certeza tem bom domínio de lentes e edição, divide seu filme em dois quinhões de linguagem, mas é evidentemente sentimental e adocicado a mais do seria o desejável, acabando por impregnar definitivamente com “açúcar” a impressão inicial passada pelo modo de filmar, na opção do desfecho que leva o garoto de volta.

Crisálidas, de Lígia Maciel Ferrer. Brasil (SC), fic, 13 min.

Esse filme catarinense – um trabalho de TCC da Unisul (SC) – tem seus problemas bastante distinguíveis justamente por dois aspectos: primeiro, porque realmente tem a falta de certezas que se imagina muito mais comuns em diretores que estão estreando no ramo, mais ainda com trabalhos feitos como conclusão de curso escolar; segundo, porque é feminino demais, delicado demais, sensível demais, mas com tais questões se apresentando fortemente inseguras para constituírem ação de atitude em “defesa da classe”.

Bem filmado, sim; com falta de explicações mais diretas (o que costuma ser ponto a favor em curtas-metragens) para imprimir linearidade; boa iluminação, até boa interpretação da garota, que faz uma personagem que perdeu o pai e se vê indecisa ante a viagem que terá que fazer… Mas a liga que normalmente deveria brotar das decisões dos realizadores acaba ficando em patamares que não possibilitam aceitá-lo como obra mais segura, concreta. Muito ao contrário: bastante indecisa.

Um Animal Menor, de Pedro Harres, Marcos Contrera. Brasil (RS), fic, 15 min.

Os diretores deste curta gaúcho apostaram de maneira clara em duas situações para o desenvolvimento desse seu curta: na atuação de Elisa Volpato, e na fotografia de Bruno Polidoro. O que resultou dessa aposta total foi um trabalho em que atuação de Elisa se instalou como o provavelmente desejado por eles (forte, quase visceral, e um pouco acima do tom, como ocorre quando elas são feitas ao “estilo teatral”); e onde a fotografia é elaboradíssima, recheada de nuances de luz e ângulos interagindo para que momentos ganhassem marca forte, mas que impera de forma um tanto agressiva.

Passado em tempo e locais indefinidos, com dois personagens que não se saberá jamais se são frutos de verdade concreta ou metáfora das complexidades do ser humano, o clima imposto pela trama já seria angustiantemente sedutor o suficiente por si só, podendo ser menos ostensivo nas duas “opções” imaginadas como elementos essenciais para a sua condução. A atuação dela sem dúvida é boa: uma atriz de futuro e talvez pronta para “estourar”, como havia me alertado ontem mesmo um amigo do Rio Grande do Sul, mas que me pareceu excessiva a partir do momento do filme em que se percebe “a coisa pegará”. O mesmo com o trabalho das imagens de Polidoro, que obteve contrastes bem bons entre o fundo do poço e o céu que se via a partir dele – sempre com caminhos suavemente bem realizados nos movimentos das câmeras -, mas que, talvez pela edição, e também a partir de um dado instante, toma conta demais do ambiente, que afinal já estava bem esquadrinhado e “estava lá mesmo”.

P.S.: o momento em que as lentes finalmente “escapam” do poço e da escuridão, alcançando a luz com o garoto correndo sobre vegetação, é o melhor momento do filme: na realidade, um dos momentos mais bonitos, imageticamente, que vi ultimamente.

Desbravadores de Caminhos, de ZPDR, Betânia Victor. Brasil (DF), doc, 15 min.

Revelando inicialmente histórias do povoado de São Jorge, na Chapada dos Veadeiros, através de depoimentos de habitantes do local – que falam dos tempos em que a região foi terra de garimpagem, quase destruida por tal prática, e falam, também, da mudança de panorama,quando se passou a ter tomada de consciência de que aquela beleza poderia acabar, o que resultou atitudes conjuntas entre os locais e os órgãos governamentais (que deveriam sempre proteger tais locais) -, esse belo documentário ganha espaços e beleza ante o olhar do espectador a cada segundo de imagens projetadas na tela se acumulando.

Não é tão simples o ato de orientação do que será ditado por documentários quanto faz sugerir o procedimento quase primário de revelar razões e tal: num primeiro momento via depoimentos, para depois levar a edição a inserir as imagens (de arquivo, filmadas, sobre pessoas, locais ou situações) como continuidade de tratamento. É isso que fizeram aqui, com justeza e percepção bastante rara dos momentos em que tais alternâncias deveriam ganhar sua vez. Não sei se pela história, se pela beleza do local, pela simplicidade e espontaneidade dos “depoentes”, ou se pela junção correta de tais “farturas” (creio bem que tudo junto), mas sei que o que se constata é marcante, humano, “caipira”, de verdade. Valendo muito, mas muito mesmo, ser conhecido.

Reencontro, de Fábio Lupo. Brasil (SP), fic, 16 min.

Bonito, contido, correto. Poderia parecer meio infantil se fosse lida somente sua sinopse – que fala de um reencontro escolar, de memórias, de pequenas atormentações restadas de momentos específicos da infância -, mas Fábio Lupo soube muito bem dar conta do que filmou. Por não tentar se amparar em atuações dramáticas demais (uma tentação em tal tipo de história), por não abusar dos flashback de forma rompedora de continuidade (fluem e entram em sua vez ritmo natural que o filme utiliza), nem pelo artificialismo der mudanças drásticas de luz, texturas ou cores. Por vezes, contenção (aliás, diria que quase sempre) tem que ser a palavra de ordem.

O Retorno de Saturno, de Lisandro Santos. Brasil (RS), ani, 12min.

Trabalho em 2D dos mais “primários”, de traços retos e cores quase primárias, mas que, nota-se, é assim porque o diretor Lisandro Santos se dedica muito mais à história como seu mote condutor do que à sua confecção técnica. Pode ser visto por crianças ou adultos – apesar de contar história de sujeito “fracassado” – já que a dinâmica é voltada justamente para não se fazer difícil por nenhum aspecto pelo qual se queira analisá-lo. Se a intenção era a de ser objetivo, razoavelmente engraçado e fácil, atingiu seus intentos.

Revertere ad Locum Tuum, Armando Mendz. Brasil (MG), fic, 18 min.

Colocar atores realmente bons juntos num mesmo filme – principalmente curta, com toda aquela sabida diferença de atitudes das mais variadas exigindo opções muito apropriadas para o formato – é sinal de que o resultado será minimamente bom, satisfatório? No caso desse Revertere ad Locum Tuum, sim! Ter, então, Otávio Augusto e Berta Zemel (principalmente) juntos…

Os dois dão show normalmente. Quase nunca credito sucessos ou fracassos em curtas às atuações, mas aqui, e lembrando que os outros também estão bem demais, não há como escapar de tal afirmação. Lógico que o diretor Armando Mendz tem muitos méritos na escolha do cast para poder representar sua comédia da maneira que ela mereceria. E é o que se deu. Comédia das mais comuns (no melhor dos sentidos), sem muitas invenções na trama (que fala do desejo de uma matriarca ser cremada após a morte, mas com a condição de que o marido – morto há décadas – também “fosse pulverizado” na natureza juntamente com ela), conduzida pelo bom e divertido texto, pelas boas e até complexas soluções estéticas (as da sala da família antiga, principalmente numa passagem de tempo veloz – com direito a elementos cenográficos entrando e saindo para revelar tal passagem), mas que de nada valeriam (especificamente em filmes de tais intenções de alcance) se não fossem conduzidas pela qualidade extra das grandes atuações. Para se rir com gosto.

Ao Vivo, de Peppe Siffredi & Antônio Guerreiro. Brasil (SP), fic, 17 min.

Só pra contrariar – só porque falei de atores em curtas – esse daqui, de São Paulo, com Mel Lisboa (concordo, que nem seja tão boa atriz, vá), e o grande Paulo Cesar Peréio (esse, um monstro), se utiliza deles de forma evidente como tentativa de seus nomes funcionando como chamariz. Cheio de recursos, de misturas de linguagens (inclusive com, animação de boa qualidade fazendo parte de recortes), hiper-momentos catárticos, de exacerbações de textos e atos das mais variadas espécies (desde momentos justamente de interpretação, até cortes bruscos e insinuações de violência), hiper-velocidade, e mais alguns truquezinhos a mais, nota-se que não foi contido nos gastos, e excessivo em pretensão. Talvez atinja públicos que filmes do tipo alcançam (algo mais “moderninho”, de outras artes), mas realmente me pareceu mais um fruto de exibicionismo, de exercício de mistura desconexa de estios.