BOLETIM ESPECIAL DO FESTIVAL CURTA CANOA.

Escrevendo já na manhã da quarta-feira e o Cinequanon ainda fora do ar. O que deveria ser ânimo puro, já passou pela fase “desespero”, e agora se instala no quesito desesperança. Esperando que tudo isso algum dia possa ser lido por alguém, não vou mudar meus textos quando, porventura, o site se re-estabelecer, mas a sensação de nada poder fazer por minhas mãos, por minha vontade, só faz com que, sinceramente, repense nossa trajetória daqui para diante. Pronto, nem vou mais falar abertamente do assunto, mas não omiti de quem nos acessa a situação atual, já nesse início do meu quarto dia em “Canoa Quebrada”.

A noite promete um “luau” oficial para os que estão por aqui pelo convite da organização – e já percebi nitidamente que tal situação é aguardada ansiosamente pelos mais “veteranos” do evento. Esse marzão já não me assusta tanto como no primeiro dia que o encarei de longe: já o conheci mais intimamente, digamos, e a próxima tentativa será a do passeio de jangada – aquele “veículo” que, não se sabe como, consegue se manter boiando e indo a águas tão distantes da costa (quase inacreditável quanto o fenômeno do avião, com aquele peso todo, conseguindo subir e descer – sem ao menos bater as asas). Já que estou aqui, tentarei as “turistadas”, as aventuras pra gringo. Passeando à noite com mais calma pela rua principal (a Broadway), o que me chamou novamente atenção – agora sob luz tênue e amarela nos lustres antigos -, foi a diversidade de restaurantes e lojinhas, sem tender demais a agradar pelo lado pitoresco. E isso, num lugar que agrada e atrai demais turistas de fora, o que normalmente acaba por levar os “nativos” que vivem do turismo a “enfeitar” seus estabelecimentos com mistura descabida de elementos, para agradar quem não conhece, fazendo esses visitantes sentirem estar participando da verdadeira tradição dos lugares que estão visitando – aquela coisa do antigo dominador se encantando, e se “redimindo” (ao gastar seu dinheirinho) pelos ancestrais que exploraram e empobreceram, onde “mergulham e embebedam”, felizes da vida, hoje em dia.

Acho que vou mais rapidamente para as críticas da sessão de ontem: um pouco menos de vento, a mesma quantidade de crianças, mais uma sessão longa, e início na hora exata – o que é bom, sempre bom.

MOSTRA COMPETITIVA

Bucaneiro (foto), de Juliana Milheiro. Brasil (RJ), fic, 18 min.

Bucaneiro é filme bastante voltado à observação rigorosa de formas. Como todo bom trabalho criado na Universidade Federal Fluminense, percebe-se que muito do objetivo final da questão a ser apresentada está bastante voltada ao bom modo de apresentar um trabalho bem montado e, quase sempre, com disposição à ostentação estética um tanto mais aprimorada do que o normal. É sempre bacana reparar que a Federal Fluminense preza demais o formalismo na formação de seus alunos. Quase sempre bom, porém, constatar que esse prezar tem, por vezes, resultado alguns trabalhos que acabam ficando herméticos demais nessas tentativas, e um tanto distantes de uma apreciação mais fácil.

No caso, Juliana se ateve ao aprendizado acadêmico, mas ultrapassou esses hermetismos ao focar suas lentes e o modo de ordenação na edição com métodos mais velozes, claros, coloridos… Mesmo para os não tão atentos, o fato de ela contar uma história feminina e jovem ao extremo, composta pelo modo de disposição das imagens – divisão de tela, luminosidade farta – facilita a captura dos sentidos. Sobrando para os “mais atentos” o prazer de perceber ângulos bem planejados, quadros bem desenhados, câmera bem manuseada. Ainda mais, há um mote que acaba “satirizando’ essa questão de distribuição de filmes, de pirataria, com questões e opiniões sem nenhuma obrigação de impor soluções. Resumindo: bom filme para se ver e pensar.

Cheirosa, de Carlos Segundo. Brasil (MG), fic, 05 min.

Filme honesto em sua intenção inicial que é a de contar uma situação de mal entendido bobinho – fato que gera piada quase sempre, consequentemente. Carlos Segundo não quis fazer nada demais e não errou pela opção. Filma direito, tem domínio dos locais, se aproveita da boa espontaneidade dos atores – principalmente da garota que dirige uma Brasília – e dita um curta tão rápido quanto uma piadinha deve ser para ficar marcada como coisa boa.

Todos São Francisco, de Nany Oliveira. Brasil (CE), doc, 16 min.

Esse documentário, mesmo vindo de uma oficina para curtas (portanto, realizado por “aprendiz” no ramo), contem em si um bocado das dinâmica e vivacidade que se têm feito algumas facetas mais reconhecíveis no cinema curtametragista realizado no Ceará. O Estado, já consolidado como um dos focos recentes do cinema brasileiro (fato que ganhou potência desde os meados da primeira década dos anos 2000, com a explosão das realizações no formato “curta”), vem demonstrando que seus realizadores são bastante atentos ao modo técnico de confecção da arte, e Charliane, não sei se por “herança genética” ou por observação, concretizou seu filme com, bastante cuidado nos quesitos que compõe as linhas fundamentais da construção cinematográfica.

Para contar a história de uma espécie de mãe-coragem, com características não tão “edificantes” assim – quando se pensa no conceito geral, que faz pensar numa mãe que cria uma grande levada de rebentos como pessoa fiel a um só gerador (no caso, cada um de seus filhos foi gerado por pai diferente) -, a diretora se aproveitou dos melhores trejeitos a serem aprendidos, e entregou um filme bastante bem fotografado (com muita imaginação, possibilitando angulações diversas no início de cada recorte), bastante bem montado, com dinamismo e fluidez (sem ser careta), e boa captação de som: o que possibilitou, também, espaço bem justo para as explanações dos “personagens” que passaram aos montes (tantos filhos, afinal) frente seus microfones. Belo e promissor início.

Garoto Barba, de Cristhopher Faust. Brasil (PR), fic, 14 min.

Aparentemente o movimento cinematográfico no Paraná parece estar ganhando força. Ultimamente surgiram curtas e longas de lá, e isso é coisa sempre bem vinda – não dá para entender uma região com qualidade de vida acima da média nacional deixando de lado essa que é a arte de maior alcance, em várias escalas. Os trabalhos que tenho visto são de boa qualidade e esse Garoto Barba, mais especificamente, se revelou uma grande sacada. Principalmente por ter aproveitado a oportunidade de poder fazer desse pouco tempo destinado aos curtas um espaço onde a “situação piada”, que leva a trama numa primeira observada, evitando o cansaço por repetição ou falta de empenho no desenvolvimento.

Lógico que falar de um garoto que tem como problema o excessivo crescimento dos pelos no rosto já na mais tenra infância é de mote jocoso. Mesmo em se querendo observar a transformação da relação entre pais e filhos com o avançar dos anos como uma possibilidade para tratar o filme por observações mais intensas (digamos), seria falsear, desviar a atenção tal atitude – seria perder um mote forte à mão. E o bacana é que o diretor, Cristopher Faust Pereira, evitou tal aprofundamento, mantendo-se nesse mote, abastecendo as situações engraçadas e, principalmente, sem permitir – com a constante mudança de enfoque no “fenômeno” – a possibilidade da mesmice espanando a coisa.

Inverno, de Mikael Santiago. Brasil (RJ), fic, 14 min.

Por vezes me sinto um tanto excessivo e repetitivo quando cito, cobro ou destaco as situações estéticas e técnicas desenvolvidas nos curtas que vejo – mas é que prezo o bom trato desses quesitos (todos deveriam – os que dizem gostar de cinema…). Inverno trata no seu âmago de questões de sensação de abandono, e algumas outras também não tão “festivas”, que ocorre com mulheres grávidas. Ana passa por um momento desses, vendo suas questões “potencializadas”, principalmente, pela distância do marido e da família – marido que fala com ela ao telefone, mas nunca se faz “tão presente” quanto suas ansiedades necessitam.

Posta a história, o que faz com que o curta ganhe força mesmo é o fato das opções estéticas adotadas por Mikael Santiago cumprirem um papel de aproximação extrema com a personagem. Quando destaca seus lábios serenamente, para depois mostrá-los serenamente crispados, ultrapassa a possibilidade do texto expressando um momento específico, para permitir que a imagem se encarregue de tal questão. Quando capta o céu azul ao colocar suas lentes coladas em seu olho, consegue aquele tipo de beleza plástica que fazem entender o cinema como a arte das imagens. Outros momentos de qualidade na captação – um bom bocado – fazem do filme uma obra a ser sugerida e recomendada.

Ao Meu Pai com Carinho, de Fausto Noro. Brasil (SP), fic, 15 min.

Um modelo de cinema em curta-metragem vindo da cidade de São Paulo tem insistido em historinhas burguesas com pouco apelo e relevância ao contado em suas histórias, e com “comportamentos estéticos” tão superficiais quanto. Fausto Noro engana logo no início ao “ameaçar” (ao menos a mim) estar entregando um desses trabalhos – são falsamente reveladores de juventudes entediadas, agressivas, “oprimidas” pelo poder de um dinheiro que acabam nunca negando de verdade, e que são realizados por elementos que se imaginam parte dela.

Mas como disse, pelo bem, o filme ameaça ser um desses, e acaba se mostrando uma surpresa bem mais leve e despretensiosa. Curta que utiliza um engano como história, uma piada, e se sustenta bem com isso. Não é nada demais esteticamente – bem simples, na realidade -, mas consegue se sustentar bem nas pernas com algumas boas atuações, geradas por situação tremendamente urbana, que costuma apavorar o povo das grandes cidades que se imagina um tanto distante da realidade social. Despretensiosos e funcional.

Reminiscências, de Aly Muritiba. Brasil (PR), fic, 19 min.

Muita vela boa gasta com mau defunto seria jocoso ou agressivo demais para classificar sinteticamente esse trabalho de Aly Muritiba? Sem querer parecer somente agressivo e de mau tom: o rapaz gastou muita qualidade na captação, muito denodo na montagem, utilizou muito equipamento, viajou (aparentemente) com equipe e tudo mais, para fazer um filme daqueles que imaginamos (ou história que imaginamos) quando temos doze anos e nos emocionamos por tê-lo imaginado. Mas e o resto? E o tempo gasto para transformar isso num filme que avance ideias tidas lá atrás? Chega a ser quase constrangedor.

Película

Quando as Cores Somem, de Luciano Lagares. Brasil (SP), ani, 15 min.

Luciano Lagares criou tipos razoavelmente estranhos nessa sua animação que mistura técnicas em 2D e 3D – de desenhos espichados e definidos demais pelo traço de entorno -, para situar uma pequena garotinha como questionadora de razões que devem ter afligido enormidades de animadores quando ainda crianças. Na realidade, evidentemente voltado para o público infantil, imagino que a opção de abdicar dos diálogos para apostar nos desenhos contando o drama dela talvez não resulte fácil assimilação: delas, as crianças. Com bom movimento das figuras é principalmente interessante quando os 2D entram em cena (os desenhos e pinturas feitos com lápis). Mas no todo, pareceu vago demais: “complexo” dentro da proposta de simplicidade subentendida como opção de público buscado.

Senhoras, de Adriana Vasconcelos. Brasil (DF), fic, 11 min.

Falar de velhice – daquela que impede alguém de ser autônoma, ou daquela que busca na memória recordações “dos bons tempos” – é quase sempre questão que consegue remeter a sentimentalismo exacerbando, vontade de chorar insistindo em incomodar, a nos vermos num futuro, ou lembrarmos… Adriana Vasconcelos inicia esse seu curta de relação entre duas senhoras – mãe e filha, uma bem mais velha e naquela condição de não poder sair da cama -, com muito carinho no cuidado dedicado, com atenção, com momentos de conversa que trazem tempos bons como refresco. Não se aprofunda demais nas questões e não tenta manuseá-las por trabalho mais rebuscado – se bem que o momento em que um plano geral revela o quarto com a cama bem no meio “somente” como um objeto a mais fazendo parte de um “relicário recordativo” seja belíssimo -, mas acaba atingindo fortemente nossa alma pelo desenvolver da história, numa única noite, como se fosse apenas um passo dado. Simples na dinâmica, aparentemente simples na construção, e potente sentimentalmente.

O Som do Tempo, de Petrus Cariry. Brasil (CE), doc, 10 min.

Aguardar um novo filme de Petrus Cariry tem sido para mim um prazer até hoje sempre recompensado. Um dos grandes estetas do cinema curto do país, que fica muito além da marca da excelência estética, para ingressar também em assuntos de bastante relevância, tendo seu Ceará como essência instigadora. Sempre foi assim: de dinâmica moderna, compreensão das possibilidades pelas novas tecnologias, um sujeito evidentemente urbano, mas com um olho e muitas sensações voltados para as tradições, para o interior, para as coisas que se imagina as que constituem os fatos que marcam uma região, um povo, um local que povoa regiões que resguardam mitos e curiosidades de mentes.

Com câmera bastante atenta ao que pode virar arte visual – sem pressão, sem exibicionismo, sem “maracutaias”, como sempre ocorre em seus filmes, com a diferença que dessa vez o encargo maior ficou para ele mesmo, menos para Ivo Lopes Araújo -, a sua busca eterna de fazer ver o quanto seu estado funciona em tempos diferentes (complementares, tanto quanto antagônicos) dessa vez foi ao encontro das imagens de uma senhora, bastante marcada como costuma ser a feição dos habitantes do agreste, que já não vive no sertão (porque o concreto está tomando conta de tudo, afinal), mas tenta persistir no seu ritmo, na sua velocidade, resistindo.

Petrus “abusa” na qualidade das imagens obtidas, mas o forte mesmo reside justamente no som que se empresta ao nome do filme: enquanto ela vive ao seu modo, lavando suas roupas, excluída do seu entorno, o som de pássaros e de galos ajudam-na a se isolar, criando uma “trilha sonora” especial, recordativa, “imersora”. Sob tais ruidos insistindo em sonorizar as cenas, já no final, a câmera amplia seu “olhar”, e a visão de prédios em construção ou já construidos acaba por revelar que O Som e o Tempo também pode ser compreendido como mais um manifesto contra esse excesso de concreto que vem tomando conta da região. O curta trata de questões que incomodam ou motivam o diretor, para tratá-las “belamente” com seu cinema.

Amigos Bizarros do Ricardinho, de Augusto Canani. Brasil (RS), fic, 20 min.

Vira e mexe trabalhos egressos lá do Rio Grande do Sul chegam a nós com aquela mesma tocada “engraçadinha” que Jorge Furtado inventou na época de seu famoso “Ilha das Flores”, o que acaba sendo motivo para comentários sob falta de vontade em busca do progresso da cinematografia curta produzida no estado. Quando começa, Amigos Bizarros do Ricardinho parece que será mais um desses trabalhos que reverenciará o outro por essas “sacadinhas” – a apresentação dos personagens, o detalhamento pormenorizado, a imagem captando o alvo descrito… -, mas… Vai além: ainda bem. Inclusive restando lá no final uma sensação de que tais momentos podem ter sido justamente paródia a tal procedimento.

O filme de Augusto Canani acaba sendo bem divertido pela maneira escolhida de contar os fatos bizarros que compõe o filme, onde a aposta acaba por se fixar num sarcasmo narrativo interessante, que se “opõe” às feições meio abobalhadas dos personagens. Personagens verídicos – é o que se afirma nos créditos iniciais. Rápido, filmado de uma maneira em que em vários momentos parecemos estar vendo algum filme do finlandês Aki Kaurismaki (que tem cinemas recheado de tipos bizarro, afinal), inclusive pelos modelos de cor e luz obtidos. Surpreendentemente, mesmo ameaçando ser uma nova homenagem, desviou, encontrando um resultado bem satisfatório.