O ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DE “SAUDADE FEZ MORADA AQUI DENTRO”.  

Por Celso Sabadin.  

Antes tarde do que mais tarde. Felizmente o circuito brasileiro de exibição cinematográfica (que mal exibe filmes brasileiros) foi destravado para o diretor e roteirista Haroldo Borges.  

Poucas semanas após ter chegado aos cinemas o ótimo “Filho de Boi” (produzido em 2019), estreou nesta quinta, 19/09, o também sensível e marcante “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, concluído em 2022. Ambos são de Borges. Ambos já são fortes candidatos à minha lista afetiva dos melhores filmes lançados em 2024.  

O longa nos cativa logo na primeira cena. Os irmãos Bruno e Ronaldy (vividos respectivamente por Bruno Jeferson e Ronaldy Gomes) brincam às gargalhadas em algum descampado qualquer do interiorzão brasileiro. Falam sobre suas próprias habilidades no futebol e na escola, e sobre as supostas meninas com quem teriam ficado. A câmera livre, leve e solta de Borges envolve os meninos numa aura de extremos realismo e empatia que nos joga em instantes para dentro daquele universo deliciosamente lúdico e juvenil.   

Tal conexão dos personagens com o público potencializa a força da pancada que virá imediatamente a seguir: Bruno, aos 15 anos, está ficando irreversível e irremediavelmente cego. Como lidar com isso? 

Este verdadeiro ensaio sobre a cegueira proposto pelo filme utiliza o microcosmo do sertão baiano para representar simbolicamente uma grande tragédia que tem se espalhado pelo Brasil e pelo mundo. “Após mergulharmos no período onde a política brasileira tomou o rumo para a escuridão, o mais impressionante foi encontrar amigos e familiares que estavam torcendo pelo governo fascista. Parecia uma verdadeira epidemia de cegueira que se espalhava por todo o país. Precisávamos de uma história sobre a cegueira. E a história de Bruno parecia ser a metáfora perfeita para o que estávamos vivendo. Mas não queríamos uma cheia de desesperança, porque já estávamos todos mergulhados naquele cenário apocalíptico. “, explica o diretor e roteirista Haroldo Borges. “Queríamos contar uma história que apontasse para a luz, que mesmo dentro dessa escuridão, houvesse a possibilidade de luz”, afirma.  

Para executar seu projeto, Borges bebeu na fonte dos neorrealistas italianos dos anos 1940 e incorporou os próprios representantes da comunidade local do interior baiano, onde tudo foi filmado, ao elenco e à equipe. Os atores adolescentes – Bruno Jeferson, Ronaldy Gomes, Angela Maria e Terena França – foram escolhidos após um processo de seleção que envolveu 1.300 jovens de escolas públicas do lugar. Para obter maior realismo, os personagens foram batizados com os verdadeiros nomes de seus intérpretes. 

A direção optou por não revelar o roteiro para os atores. “Toda a história foi transmitida oralmente, cena a cena”, explica Borges. “Os atores entendem a situação e defendem seus personagens com vocabulário próprio”.  

O resultado, dos mais eficientes, foi fundamental para o mergulho no emocionante mundo de claros e escuros de Bruno.  

“Saudade fez Morada aqui Dentro” entra em cartaz após uma trajetória de premiações em festivais como o de Mar del Plata (Melhor Filme e Prêmio do Público), Festival de Málaga (Melhor Montagem), Festival do Rio (Melhor Filme na Competição Novos Rumos da Première Brasil) e Mostra de Cinema de São Paulo (Prêmio Netflix e Prêmio Paradiso). Ficou também entre os seis pré-selecionados para representar o Brasil no Oscar, o que no caso não é muito importante porque o Oscar sequer mereceria um filme desta sensibilidade.  

O longa estreia em salas de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Vitória da Conquista, Fortaleza, Maceió, Recife, Florianópolis e Brasília.