COM “UM BEIJO ROUBADO”, KAR WAI COMPROVA A UNIVERSALIDADE DA LINGUAGEM DO CINEMA

Às vezes, a globalização dá certo. “Um Beijo Roubado”, por exemplo, é um filme falado em inglês, estrelado por atores norte-americanos e britânicos, rodado nos EUA, dirigido por um chinês e co-produzido por Hong Kong, China e França. E o resultado é belíssimo!

Jeremy (Jude Law) é o proprietário/balconista de um pequeno bar/restaurante situado em Nova York. Ele conhece seus fregueses pelos pratos que pedem, nunca pelos seus nomes. Para ele, o cliente se chama “Sr. Costeleta de Porco com Cebola” e assim por diante. Certa noite, cruza pelo caminho (e pelo bar) de Jeremy a angustiada figura de Elizabeth, personagem vivida pela cantora Norah Jones, estrelando otimamente como atriz. A garota está abalada pela notícia de que acabou de ser dispensada pelo namorado. Como o boteco de Jeremy era uma espécie de ponto de encontro entre ela e o “ex”, Elizabeth acaba chorando suas magoas no ombro amigo do simpático dublê de bartender. Nasce entre ambos uma bela relação de amizade, amor e cumplicidade. E não pense que o que virá daí para frente será fácil de prever. Afinal, trata-se de um filme escrito e dirigido por Wong Kar Wai, o mesmo de “Amor à Flor da Pele”, “2046” e “Felizes Juntos”, entre outros.

“Um Beijo Roubado” propõe uma interessante e diferente estrutura narrativa para contar sua história de amor. Jeremy é um personagem que pode ser considerado uma “âncora”, um tipo de “porto seguro” que certa vez deixou a Inglaterra para se estabelecer em Nova York, e lá se fixou com unhas e dentes para não mais sair. Quando pequeno, sua mãe o ensinou a não sair do lugar caso estivesse perdido, pois assim seria mais facilmente encontrado. E Jeremy quer ser encontrado.
Por outro lado, Elizabeth busca fugir de sua desilusão amorosa viajando milhares de quilômetros pelo interiorzão dos Estados Unidos, trabalhando dia e noite para driblar a insônia. Faz questão de escrever longas cartas ao amigo Jeremy, porém sem nunca colocar o remetente. Em sua fuga de si mesma, no fundo ela quer se encontrar, e esta trajetória terá de ser cumprida em solidão.
Neste road movie de mão única – onde um viaja e o outro fica – haverá espaço para descobertas, buscas e amadurecimento.

O filme espalha pelo seu roteiro várias pistas poéticas. Um pote de chaves perdidas à espera de fechaduras para serem abertas. Uma jogadora/mentirosa profissional que se gaba de saber “ler” as pessoas, mas que não conhece sequer a si própria. Um policial com o poder de prender a todos, mas que cai preso na própria armadilha de amor que armou para si mesmo. Tortas de blueberry (existe esta fruta no Brasil?) que nunca são comidas porque todos preferem as de outros sabores, mas que todos os dias, mesmo assim, são feitas novamente, num insistente círculo vicioso de rejeição. São diversos os níveis de leitura deste belíssimo roteiro.

Esta complexidade temática é emoldurada por um belíssimo trabalho de direção e fotografia, que optam pela profusão de closes, com os rostos dos personagens enchendo a tela, como que valorizando a força do elemento humano. As belas cores da noite são captadas com extrema competência pelo fotógrafo iraniano Darius Khondji (o mesmo de “Beleza Roubada”, “Seven – Os Sete Pecados Capitais” e “Evita”, entre muitos outros) que consegue criar um clima de sonhos ao desfocar os fundos e valorizar ainda mais os rostos em primeiríssimo plano. Tudo isso regado à trilha sonora de Ry Cooder, o mesmo do inesquecível “Paris, Texas”.

“Um Beijo Roubado”, primeiro filme falado em inglês de Wong Kar Wai, mostra que quando a linguagem do cinema prevalece sobre as demais, o idioma que se ouve na tela passa a ser absolutamente secundário.