GRAMADO 2014: NEVILLE DE ALMEIDA CONDENA A “CENSURA DOS PATROCINADORES”.

O cineasta mineiro Neville de Almeida (que também assina como Neville d´Almeida) foi um grande campeão de bilheteria na época da Embrafilme. Somente suas adaptações de Nelson Rodrigues (A Dama do Lotação, de 1978, e Os Sete Gatinhos, de 1980), venderam, juntas, mais de dez milhões de ingressos no país. Entre 1970 e 1991 dirigiu 10 filmes, alguns deles jamais exibidos por problemas com a ditadura, e sempre foi uma pedra no sapato dos censores. Sem filmar desde 1997 (quando adaptou para o cinema a peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos), Neville tenta voltar ao mercado com um novo projeto, mas esbarra numa dificuldade que desconhecia: a burocracia e os entraves oficiais em tempos de leis e editais.

Confira a entrevista que o cineasta concedeu no Festival de Gramado:

Sem a censura da época da ditadura, nosso cinema hoje é livre?
Neville de Almeida – Veja, o primeiro filme que eu fiz, Jardim da Guerra, em plena ditadura militar, em 1970, foi censurado e nunca foi lançado. O segundo filme, Piranhas do Asfalto, um ano depois, também foi censurado e nunca foi exibido. Isso seria suficiente para acabar com a carreira de qualquer um. Mas eu não pensei em desistir. Pensei em fazer meu terceiro filme mais barato, rodado em 16 milímetros, ao invés do tradicional 35, e exibi-lo clandestinamente, sem submetê-lo mais à censura. Quem busca a liberdade precisa resistir, e não se resignar.
Eu tinha esta ideia fortemente na cabeça porque quando eu era garoto, eu via aqueles filmes americanos onde o mocinho cortejava a mocinha, se casava com ela, ele a carregava no colo, vestida de noiva, os dois iam para o quarto, se beijavam, e quando ia acontecer aquilo que todos queriam ver, a cena já corta para o dia seguinte, com ele servindo um suco de laranja para ela no café da manhã. Ora, todo mundo que estava naquele cinema ficava profundamente decepcionado, mas engolia. Só que eu, caipira, com 15 anos de idade, pensava: “Se um dia eu fizer cinema, eu não vou fazer assim. Isso está errado, não pode ser assim”. O mundo, através do cinema americano, ficou impregnado por este moralismo, por esta coisa primária, hipócrita, mentirosa, que rouba do cinema as melhores coisas da vida. E não era assim que eu queria fazer.

Mas você pegou em cheio a pior fase da ditadura.
Neville de Almeida – Viemos de um tempo de muita censura: moral, intelectual, política, policial… e tudo era muito, muito mais difícil. Quando há 35 anos eu passei o filme Os Sete Gatinhos no Festival de Gramado, fui ameaçado de ser preso e expulso da cidade. O secretário de cultura da época ameaçou interromper o festival por causa do filme, mas o Gastal [Paulo Fontoura Gastal, crítico de cinema e um dos diretores do Festival de Gramado da época] peitou o secretário e garantiu a exibição do filme e a continuidade do Festival. Ou seja, havia uma censura, mas também havia uma luta pela liberdade, uma resistência.
Mas hoje a gente tem outra censura também muito forte, que é a censura dos patrocinadores e a censura institucional. Muitas vezes as pessoas pagam um preço muito caro para tentar falar as verdades universais através do cinema. Porque o cinema é uma arte cativa. A música é uma arte livre. Você pega o instrumento e toca o que quiser, como quiser, onde quiser. A literatura é livre, você pega e escreve o que quiser, onde quiser, como quiser. A pintura é livre. Mas o cinema, não. O cinema é uma arte industrial cada vez mais policiada e controlada pelos patrocinadores e pelos mecanismos dos editais.
Hoje, um roteiro de Glauber Rocha jamais seria filmado. Veja este roteiro aqui, escrito pelo Glauber [Neville abre uma pasta repleta de anotações, esquemas, quadros e gráficos desenvolvidos a mão por Glauber Rocha]. Nenhum edital aceitaria isso. Atualmente um roteiro, para participar de um edital, tem até tipo de letra certo, tamanho e espaçamento de textos certos para poder concorrer, senão já é eliminado de cara. Não podemos aceitar este pensamento de “isso pode, isso não pode; isso tem que ser na luz, isso tem que ser no escuro; esta cena já está durando seis segundos e deveria durar cinco”. Que arte é essa, que liberdade é essa, que artista é esse, que hipocrisia é esta? O cinema é uma arte cada vez policiada.

Você não acredita em formulações para escrever roteiros?
Neville d´Almeida – Na hora de fazer um filme, de escrever um roteiro, não existe uma fórmula. Existe a capacidade criativa, a capacidade inventiva. Claro que existem elaborações técnicas, isso acontece, e tem muita gente que prefere trilhar este caminho, mas a elaboração técnica sem a capacidade criativa não dá em nada.

Trabalhar adaptando grandes autores ajuda na capacidade criativa?
Neville de Almeida – Ah, sim, muito. Eu já adaptei Nelson Rodrigues, um gênio, com todos aqueles diálogos maravilhosos. Os diálogos já estão lá, prontos, perfeitos, elaborados. E na época teve alguém que me disse: “Acho que precisamos melhorar estes diálogos”. Eu respondi: “Tudo bem, se você conseguir fazer melhor, vá em frente”. E claro que a pessoa não conseguiu.
Uma vez eu levei o Nélson Rodrigues para acompanhar as filmagens. Vieram me dizer para não levá-lo, porque ele iria me encher o saco. Mas, puxa, o cara é um gênio e vai me encher o saco? E daí? Na minha equipe tem 30 pessoas, nenhuma delas é gênio e todas me enchem o saco! [risos]. O Nelson ficava modestamente sentado, só vendo as filmagens, e alguém da produção veio me cobrar, perguntando ”quem era aquele velho que não fazia nada e ainda ficava gastando o dinheiro do orçamento do filme, almoçando, usando o transporte…”. É preciso ser humilde. A humildade faz com que a gente nunca se precipite nos julgamentos.

Como era na época da Embrafilme?
Neville de Almeida – Por incrível que pareça na época da Embrafilme tínhamos mais liberdade. Era uma única comissão que aprovava o projeto, mas todos os membros desta comissão entendiam muito de cinema. Os diretores da Embrafilme também entendiam de cinema, e isso facilitava muito a liberdade de cada projeto, de cada filme. Claro que houve períodos ruins também, com interventores, com diretores que não eram da área, mas de uma maneira geral naquela época havia mais liberdade criativa que hoje.

Como é o trabalho do roteirista quando ele não escreve o roteiro sozinho, mas em conjunto com outros roteiristas?
Neville de Almeida – Eu escrevi os roteiros de todos os filmes que dirigi. Ou sozinho, ou em parceria com companheiros maravilhosos. Quando um grupo vai desenvolver um roteiro, este grupo tem que buscar harmonia, identidade. Eu preciso gostar da pessoa que está trabalhando comigo, e vice-versa. E escrever um roteiro a três pessoas, pode? Sim, pode, mas estas três pessoas precisam gostar umas das outras, e elas devem acreditar nas ideias umas das outras. Tem que existir amor entre elas.
Às vezes acontece algo mais profissional, como três pessoas que a princípio não se conhecem, ou se conhecem muito pouco, serem designadas para desenvolver um roteiro. É possível também, desde que haja uma busca incessante pela harmonia. E que seja uma harmonia em função da qualidade da obra que está sendo feita. O objetivo comum é fazer o melhor roteiro, mas muitas vezes há brigas entre os roteiristas por causa de egos. Um quer provar que é melhor que o outro, e deixam em segundo plano a qualidade do roteiro. Para se fazer um bom roteiro, em equipe, é preciso se abstrair do ego medíocre, ingressar no trabalho com concentração generosidade, abertura mental e criatividade.

Celso Sabadin viajou a Gramado a convite da organização do evento.