CRÔNICAS DO CURTA CANOA – EDIÇÃO DE SÁBADO, 25 DE SETEMBRO.

Iniciando o texto que escrevo no sábado, dia do anúncio dos vencedores, do passeio em turma para o rio Jaguaribe e algumas outras coisas mais (uma jardineira e alguns “bugues” se encarregarão de levar quase todo o pessoal convidado pelo evento para uma odisséia turística), talvez seja melhor explicar que justamente aqui onde estou escreverei os textos referentes ao último dia de competição: que foi ontem, na sexta-feira, dia em que escrevi um texto que iniciava com “Já chegamos ao último dia de Mostra Competitiva aqui…”: o que pode ter induzido leitores mais avoados, ou precipitados, a imaginar que nesse texto de ontem, escreveria sobre os últimos filmes em competição. Não! Na realidade, hoje, momento em que escrevo, relatarei sobre os últimos filmes que competirão às honras, os quais vi ontem, sendo que hoje, à noite, estaremos no último do evento, lá na quadra de esportes… Após o dia de jornadas aquáticas e arenosas, em turma, como cortesia da organização. Portanto, daqui a pouquinho, após essa lúcida e calma explicação com intuito de não permitir enganos, disponibilizarei as críticas (que ainda escreverei: bastante surreal isso) da verdadeira última noite de exibição dos filmes que brigam pelas tais honras: honras que fazem cineastas virarem inimigos disfarçados uns dos outros na hora do vamos ver. Só para não deixar que dúvidas restem. Certo?

Como creio ter conseguido atingir meu intuito de explicar tudo, tim tim por tim tim (talvez devesse reforçar novamente…), sem deixar dúvidas, sem cansar, e sem muito blá blá blá, vou aos fatos que renderiam notícias de ontem (sexta-feira, só que das de durante o dia, antes da última noite de exibição – creio que isso já esteja bem entendido): dia quente, sol, vento, e areia. Agora que os potenciais turistas estão bem informados sobre o que interessa, em lugar de clima tão instável, tão dinâmico na velocidade com a qual as condições atmosféricas costumam sofrer alterações, resta um pouco de informações para quem se interessa por cinema mesmo, ou para alguns turistas que imaginam outros afazeres como uma possibilidade nessa região tão de passeio do Ceará. Havia citado naquele texto de ontem (já não tão no seu início, na realidade, mas no de ontem, com certeza) que daria uma esticada até Aracati, sede daqui, o verdadeiro município (ao qual pertence o “bairro” de Canoa Quebrada), para dois eventos: a inauguração do Núcleo de Animação, e o lançamento do livro de Marcelo Dídimo, “O Cangaço no Cinema”.

Viagem bastante curiosa – alguns diziam que o local está a 7km de distância daqui, enquanto outros falavam em 23km: aposto algo mais perto da segunda opção, mas não tanto -, por estrada sem vegetação alta, de paisagem descampada e aberta, onde o vento que vem do mar ganha potência, e com a contribuição para o desolamento visual aditivada pelas queimadas, que também andam (ou andaram) dando o ar da “desgraça”. Cidade ampla, de bastante movimento, sem construções – ao menos as que vi – com mais de dois andares, que tem sua igreja matriz datada de 1785 (igreja de arquitetura colonial, de diferença notável quando comparada às de Minas Gerais, com seus traços mais “leves”, livres, e menos “adereços”), casario amplo, de fachada direta para a rua, janelas e portas do mesmo tamanho, algumas com azulejos originais na fachada, e uma avenida central que constitui o marco principal de preservação (e tentativa de) do núcleo histórico. Esse núcleo foi tombado pelo IPHAN em 2000 (numa de suas casas amplas fica a oficina de animação), e fiquei sabendo que andam aceleradas as questões para que ele realmente ganhe potencial turístico. Como sou daqueles que sempre caminham para descobrir os locais novos em que piso, antes da inauguração oficial e do lançamento do livro, resolvi conhecer as cercanias, sob pretexto de encontrar cajuína – uma bebida que só se encontra no nordeste, de sabor marcante, que, me garantiram, encontraria numa bodega pertinho dali, mas que na realidade só é vendida no Mercado Central (que só funciona durante o dia, sendo que chegamos lá no final da tarde…) -, passei pelas duas ruas laterais dessa em que estava, e o contraste foi algo estonteante, com pobreza e casas muito simples compondo um cenário meio mitológico (parecendo um bocado aquele nordeste do semi-árido – a região é realmente no semi-árido – que costumamos imaginar nós lá mais de baixo: principalmente os leitores e os cinéfilos). Muito curioso e contrastante esse país.

Oficina inaugurada, bonecos grandes, típicos do folclore local, fazendo número na cerimônia, uma pequena roda de capoeira… Lançamento do livro, espumante sendo bebido, o autor Marcelo Dídimo dando autógrafos – ganhei um (que lerei e sobre o qual farei comentários), gentilmente, das mãos do Adriano (uma pessoa tranquila, afável, com jeito de quem está sempre preocupado para que tudo caminhe “nos conformes”, mas de olhar calmo), organizador do Festival -, e a volta para Canoa. Em Aracati não venta – Canoa é vento -, e lá deu para sentir calor de gente grande. Se ainda interessa a algum ser razoável: passeio de jangada finalmente programado por mim, para mim mesmo (cada vez mais me sinto um outsider), para perto do final da tarde, que pretendo encerrar mesmo numa duna, apreciando o último por do sol dessa minha viagem.

Agora, à noite, aos últimos filmes (aqueles…): com mais crianças na quadra (acreditem), mais jeito de que estamos mesmo tomando seu local preferido de diversão para que nós nos divirtamos; ventania das boas, das que ganham pontos, novamente voltando; e na rua muito mais movimento, com mais baladas acontecendo e passeio da madrugada com outro teor de observação (prefiro aquele em que cruzava com “perdidos”, até porque dava para aproveitar melhor a luz artificial incidindo sobre os comércios planejados para os turistas).

MOSTRA COMPETITIVA

Vídeos

Aos Mortos de Gente Morrida, de Sidnéia Luzia. Brasil (CE), doc, 19 min.

Dos filmes que vi e que costumo, cá comigo, entender como “naifs” (nativos demais para que sejam vistos com olhar mais chatamente analítico), este da pescadora Sidnéia Luzia incita a algumas considerações. Ela já é uma “veterana” no ramo – realizou outro filme que foi apresentado aqui em algum outro ano -, e parece que tal situação a credencia a, ao menos, ter noção mais apurada de como manipular as ferramentas (não só as físicas, como câmeras ou trabalho na edição, mas as sentido de observação lógica, noção de encadeamento, razoável domínio dos tempos de narrativa), e também ser observada como um caso especial.

Fala da avó, uma benzedeira local bastante querida, indo ao seu passado como modo de apresentação, mostrando situações e falas de momentos recentes (morreu há pouco tempo), intrometedo no curta vários depoimentos (que são de “origem social ou religiosa” diferentes entre si, o que enriquece bastante o trabalho, afastando a pecha de “chapa branca”, ou no caso, “familiar”), e, principalmente, criando andamento bastante ditado pelo modo de montagem. Montagem que tem a seu favor a possibilidade da utilização de belas imagens captadas, mas não se conforma somente com essa possibilidade, inserindo-as em momentos de passagem para alternar o ritmo das costuras óbvias. Surpreende.

Pronta Entrega, de Andrés Migueis. Brasil (RJ), fic, 12 min.

O grande trunfo de André Migueis nesse curta situa-se nas opões de fluidez narrativa imaginadas para a condução de sua história. Fluidez narrativa que tenta o tempo todo mantê-lo afastado das possibilidades lineares – imprimindo momentos de percepção visual quase oníricos (talvez mesmo oníricos, mas por uma compreensão mais ampliada do termo) – como se fosse uma aposta ou um desafio a ser vencido: com resultado que se constataria somente após a conclusão. Paralelamente – e, talvez, perdendo um tanto da força ante o sub-proposto que intui ser em favor da estética (técnica visual de desenvolvimento) -, o mote (a trama – se bem que trama, no caso, pareça uma nomeação diminutiva ante as não certezas) remete a figura de um homem ao mundo imaginário daquele Rio de Janeiro metrópole que sobrevive numa função bem distante da solar ditada pelo imaginário que se tem da cidade, também sem qualquer pé mais vincado no facilmente compreensível, sem organicidade explicativa (sem a linearidade que já havia sido deposta desde as opções técnicas).

O Rio noturno, do calor noturno (fatos que compõem fatias do imaginário local, mas nada tão poderoso quanto a sua lembrança pela natureza), ou o dos bares comuns – onde esse homem cruza com figuras bizarras, num outro patamar de localização mental (talvez nem tanto, quando se lembra de algumas marcas de lá). André em nenhum momento permite que as pedras ganhem equilíbrio, auxiliado por fotografia difusa, por cenas difusas, por edição proposital e provocativamente difusa. Muito disso acaba ganhando sua razão de ser – indo para além do exercício de estilo – na suposição de que há um estado de memória (ou re-memória), de alteração temporal (daí opções por não linearidades), vigendo o passeio, a busca, o caminho do retorno às certezas (do lar?). O que resta (e quase sempre positivamente), é um filme que impregna por incômodo – ainda bem -, mas que tem sua fraqueza na opção de “remetimento” a sensações teatrais, principalmente no momento em que ocorre a interação com uma misteriosa mulher: onde a cena ganha cores e intensidade destoantes do que imagino (desejo) as necessárias para o cinema.

Enciclopédia, de Bruno Gularte Barreto. Brasil (RS), fic, 14 min.

Filme ligeiro, infantil, que – por mais incrível que pareça – traz de volta a quase eterna mania gaúcha de referenciar coisas do “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado. Disfarçadamente, ok. Mas está lá para quem quiser ver. Para contar a história singela do início da adolescência, quando os hormônios singelamente começam a dar da graça levando crianças a pensarem em namorar – ou descobrir o que é isso -, em que um garoto estudioso, de dicionário eternamente em punho, pensa estar apaixonado por uma menina que conhece num parque, para descobrir mais à frente as primeiras verdades incontornáveis.

Onde entra Jorge Furtado na história? Entra nas idas e vindas – no que realmente o diretor Bruno Gularte deve ter pensado como o grande achado do filme -, das decepções ou alegrias do menino. Voltando os olhos para explicações vindas do dicionário, com destaque nas palavras e trechos de suas significações – o eterno jogo de edição que corta o ritmo para a inserção de observações engraçadinhas, que já está longe demais no tempo para continuar servindo de muleta.

Meu Avô e Eu, de Caue Nunes. Brasil (SP), fic, 13 min.

Caue Nunes saiu vencedor no Festival de Paulínia de 2009 com o curta regional “Quem Será Katlhlyn”. Não é garoto novo no ramo – já tem alguns curtas -, mas parece ter derrapado um pouco nesse seu novo trabalho: ou por opção estética que busca o despojamento a toda prova, ou por desleixo na hora da edição. Falando assim, de supetão, posso estar passando a impressão de que o filme é o terror a ser conferido. Não é bem isso.

É até fluido, transcorre de forma ligeira, e leve. Só que não é “exigente”. Por conta de seu bom texto – a virtude mais perceptível do trabalho – lastreá-lo, Meu Avô e Eu acaba transitando por vias muito retas, diretas, sem aquelas sinuosidades que provocam emoção e exigem algum raciocínio dos que por ela passam: no caso, o espectador. E mesmo com essa opção belo caminho mais fácil (o filme realmente tem ar matuto, leve, de comédia descompromissada, misturada a reminiscências familiares saudáveis, além de evocar no protagonista reflexões sobre as razões de sua vida – se bem que tudo sob complexidade visual bem diminuída, evitada), Caue parece ter encontrado dificuldades nos momentos da pavimentação, das ligações.

Compreenda-se ligações e pavimentações como os momentos resolvidos na montagem. Não sei se por falta de opções com o obtido pelas filmagens, ou se por falha no manuseio da “ferramenta” – uma das essências pilares da construção cinematográfica -, o fato é que há comprometimento nas passagens e truncamento: num filme que deveria ser fácil, já que pareceu ser essa a opção principal do diretor.

Simpatia de Limão, de Miguel Oliveira. Brasil (RJ), fic, 10 min.

Simpatia de Limão parece comediazinha das mais reles que vez por outra povoa algum horário insólito no meio de alguma novela televisa. As figuras dela tem profundidade típica das que estão para fazer as vezes de gags que preenchem o tempo somente com o intuito de arrancar risadas leves e pouco “exigentes”, como maneira de preencher espaços de respiro. Se na televisão isso já é irritante, no cinema potencializa: o tom farsesco não funciona (a não ser em caso de gênios querendo trabalhar na faixa de localização), e as interpretações incomodam. Sem falar na piada infame embutida no final do filme.

Dona Militana – A Romanceira dos Oiteiros, de Hermes Leal. Brasil (SP), doc, 19 min.

Mais um documentário nessa sessão que fala de figura de idade, feminina, com particularidades admiráveis e um pé na benzeção. É dessas que agrada o desejo do culto que busca as raízes, que merece mesmo ganhar documentos sobre sua existência, mas que parece servir com um caminho razoavelmente na direção da “boa consideração” de público e parte da crítica.

Todas as virtudes de Militana valeriam mesmo um registro, e o diretor Hermes Leal não erra a mão no modo abordagem de sua edição – inclusive com alguns belos momentos de imagens (principalmente a que se instala como foto na tela após a exibição dos créditos finais – com muito boa música para arrematar). Mas, crendo na fé dele nas qualidades dela acima de qualquer outra coisa, fica o alerta para a qualidade ruim na captação de seus textos, e suas falas (os proferidos por ela, que evidentemente não tem o dom da boa dicção, fato que deveria gerar maior cuidado), já que a banda sonora é bem cuidada.

Cortejo Negro, de Diego Muller. Brasil (RS), fic, 15 min.

Um belo trabalho sobre assunto “simples” e bem repetido pelo cinema, que é a traição. O diretor Diego Muller criou ambientes que talvez possam representar um purgatório, e recheou-o de formas e climas. O personagem inicia o filme com uma lamentação, onde fala de um cortejo de figuras negras, que por outro lado preenchem a tela sob véus de complexa compreensão para o espectador. O ritmo do filme se mantém sempre no mesmo patamar, enquanto as coisas, placidamente, vão tomando clareza – coisas do passado, casamento, nascimento das filhas, sua relação com elas… – e, mesmo mantido o mesmo padrão estético (sem que “facilitações” tomem a vez), percebe-se que há uma história, e em várias instâncias do tempo. O texto narrado é bem bom – baseado num conto homônimo (2004) do próprio Diego – e sua transposição para tela parece ter conseguido ser bastante fiel a um clima literário não comum (o que não é obrigatoriamente necessário, evidentemente).

Zé(s), de Piu Gomes. Brasil (RJ), doc, 15 min.

Apesar de parecer evidente uma tentativa de fazer esse seu curta dialogar com a excentricidade e anarquia (sim, sabendo que o termo tem outras significações muito mais políticas do que o usual tornou comum) de Zé Celso Martinez Correia e seu teatro, Piu Gomes consegue fazer com que o mais marcante fique mesmo por conta do contraste dialogante entre o que faz o Zé Martinez, e o jeito bem mais plácido do falecido Zé Perdiz (conhecido por ter uma oficina de mecânica de automóveis, mas que fez do espaço um dos mais inusitados e queridos no Brasil – ele é, era,de Brasília -, pelas pessoas ligadas ao teatro.

Há lirismo no contraste das duas figuras, que faz perceber o quanto elas estão do mesmo lado de compreensão das artes e da vida. Quando há um questionamento do Perdiz ao Martinez, esse, de dentro de sua “carapuça louca”, deixa transparecer admiração, humanidade, e a simbiose se faz justa. O filme, de ritmo alternado – entre a visceralidade e a “timidez” – se beneficia da percepção de que tudo junto renderia algo a ser olhado, e guardado, com atenção. Deixa que duas aparências acabem cumprindo o papel científico tão comum que imprime a certeza dos opostos se atraindo. É só se entrar na jornada sem nenhuma tendência.

Bala Na Cabeça, de Cristiano Abud. Brasil (MG), fic, 14 min.

A idéia principal é a das virtudes técnicas saindo como vitoriosas únicas. Cristiano Abud mete o pé fortemente em exercício de estilo, aponta suas cores para um P&B excepcional, coloca suas lentes em ângulos inusitados, granula, dita rimos alternados, e tenta criar todos os andamentos através de sua única dominação. Não permite que reste ao espectador qualquer sentido de interferência ou modo de reinterpretar à própria maneira. É daqueles trabalhos que são pensados totalmente para serem admirados, utilizando motes duros para criar “clima”, mas que acabam carecendo (melhor: evitando) de modos de dialogar com quem o vê. Competente? Sim, mas se impondo sobre tudo.