URGÊNCIA TEMÁTICA E RIGIDEZ FORMAL MARCAM “AINDA ESTOU AQUI”. 

Por Celso Sabadin. 

“Ainda Estou Aqui” começa com um letreiro que me deixou preocupado: “Início dos anos 70 – Época da ditadura”. Ou algo parecido, não me recordo exatamente das palavras.  Mas fiquei bem ressabiado: será que vivemos num país tão contaminado pela cloroquina que é necessário explicar, por escrito, que no início dos anos 70 vivíamos uma cruel e assassina ditadura civil-militar? Ou trata-se de um letreiro explicativo para o público internacional, já que o filme é o nosso representante no Oscar do ano que vem? Talvez ambas as alternativas estejam corretas, mas é bem incômodo ter de ficar explicando, verbalizando e escrevendo o que deveriam ser obviedades históricas conhecidas por todos. Mas que não são.  

A partir dos acontecimentos reais relatados no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda Estou Aqui” relata a prisão arbitrária e o consequente desaparecimento criminoso do deputado Rubens Paiva (Selton Mello), pai do autor do livro.   

O roteiro – premiado em Veneza – de Murilo Hauser e Heitor Lorega opta por dedicar um generoso tempo inicial do longa às relações familiares da vítima com sua esposa Eunice (Fernanda Torres) e seus filhos. A opção se mostra das mais acertadas, na medida em que, ao investigar vagarosamente o cotidiano idílico da família, o desaparecimento repentino do protagonista consegue criar na plateia uma sensação amplificada de perda e de vazio. Tal desaparecimento, inclusive, transforma os rumos da obra, passando o bastão do protagonismo para Eunice (Fernanda Torres), que praticamente dá continuidade à condução de um outro filme.   

A direção de Walter Salles Jr. segue o padrão clássico, tradicional e seguro, bem ao estilo do púbico conservador e desta entidade mística denominada Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, o que credencia o filme para uma boa caminhada na trilha do Oscar (caso esta seja uma das intenções da obra).  

Além da segurança de um diretor de extrema eficiência, “Ainda Estou Aqui” se apoia também na extraordinária qualidade de seus aspectos técnicos, entregando cenografia, direção de arte, reconstituição de época, som, fotografia e montagem simplesmente irrepreensíveis.    

As interpretações são um capítulo a parte.  Do mais imperceptível figurante aos astros principais, passando por coadjuvantes de todos os níveis, todo o elenco está magnificamente equalizado, esbanjando naturalidade e realismo.  

Dentro deste contexto que beira a perfeição, a única restrição que tenho ao filme remete ao seu rigor estético – e até mesmo narrativo – na busca exatamente por esta citada perfeição. Parece paradoxal, mas a procura pelo rigidamente correto, pelo arcabouço clássico imaculado que não permite pontas soltas e por uma necessidade quase didática de exposição de fatos e datas, conferem a “Ainda Estou Aqui” uma, digamos, cintura dura cinematográfica, que o afasta de uma linguagem fílmica de maior criatividade.    

Nada, porém, que diminua a força de sua dramaturgia, tampouco a intensa carga dramática que o tema intrinsicamente carrega. Um tema, aliás, cada vez mais urgente e necessário de ser visto e revisto aqui nesta nossa triste terra plana.   

“Ainda Estou Aqui” estreia em circuito comercial em 7 de novembro. O filme está na programação da 48a. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Confira em https://48.mostra.org/