“O CONTATO” ABRE E ARREGALA DOS OLHOS DO BRASIL.

Por Celso Sabadin. 

Se  uma imagem vale mais que mil palavras, um rápido plano de “O Contato” define bem o espírito do filme: um indígena, vestindo a camisa do Flamengo, ajoelhado diante de um padre, recebe a comunhão católica através de uma hóstia.

Inevitável não lembrar do quadro que dispara a trama do recente filme canadense “O Testamento”, assim como inevitável também não lembrar de uma gigantesca pintura que se vê na Rua da Consolação, em São Paulo, retratando um “magnânimo” padre José de Anchieta, “cuidando” de crianças indígenas. Tal arte, por sinal, está sempre manchada de tinta vermelha, por mais que alguém a limpe.

“O Contato”, que estreou em 15/08, é sobre isso. Rodado na região de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e falado em quatro línguas indígenas, o longa acompanha o cotidiano de três famílias de diferentes etnias: os Yanomami, os Arapaso e os Hupda. Tais etnias estão conectadas pelo Rio Negro, via pela qual os personagens do documentário percorrem cerca de três mil quilômetros para chegarem aos seus destinos O município de São Gabriel da Cachoeira é conhecido por ser um dos locais com maior diversidade étnica do Brasil, onde convivem 23 etnias e 18 idiomas nativos. Trata-se de um dos municípios com maior extensão do mundo (quase 110 mil km²), e está localizado na região conhecida como Cabeça do Cachorro, que faz fronteira com Brasil, Venezuela e Colômbia.

Não, tais etnias nunca tiveram vida fácil, havendo inclusive lutas e desavenças entre eles, em tempos imemoriais. Mas a presença do branco evidentemente nunca ajudou em nada. Pelo contrário. Sofrendo gradativamente com as perdas de seus idiomas e identidades culturais, os Yanomami, os Arapaso e os Hupda têm – na medida do possível – sobrevivido a tudo de ruim que a suposta “civilização” lhes trouxe, seja pelas mãos da ditadura de 1964, seja pelo atual garimpo ilegal.

Com a direção de Vicente Ferraz, tais viagens antropológicas empreendidas no tempo e no espaço são contadas sob o ponto de vista dos próprios indígenas, abrangendo ainda narrativas sobre a relação entre os diversos grupos étnicos, suas crenças e a sagrada conexão com a terra.

O filme teve sua première mundial durante a Mostra Competitiva do Festival É Tudo Verdade 2023 e foi exibido, também ano passado, no Festival Internacional do Novo Cine Latino-Americano, em Havana, Cuba.

Com argumento de Mara Junqueira e Juliana de Carvalho, “O Contato” é mais que um filme: é uma aula antropológica de Brasil e de mundo.

 

Quem dirige

Vicente Ferraz é diretor de “Soy Cuba – O Mamute Siberiano”, melhor filme em Gramado e CineCeará. Seleção oficial Sundance, Locarno e IDFA. Um dos 100 melhores documentários brasileiros – Abraccine. Dirigiu “O Estado do Mundo”, selecionado para a Quinzena dos Realizadores de Cannes. Participou do festival É Tudo Verdade com “Arquitetos do Poder”. Dirigiu “O Último Comandante”, Seleção Oficial de Chicago, Beijin e Trieste. Dirigiu “A Estrada 47”, premiado como Melhor filme em Gramado e Fortaleza. O seu mais recente filme, “O Contato”,   foi selecionado para o Festival de Havana. Atualmente, prepara o longa-metragem “Bastardos”.